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terça-feira, 3 de janeiro de 2012

PAPÉIS AVULSOS II


¨  PAPEIS AVULSOS PARTE II
MACHADO DE ASSIS
¨Segredo do Bonzo
Capítulo inédito de Fernão Mendes Pinto
Nessa obra a voz textual pertence a Fernão Mendes Pinto (aventureiro e explorador português do século XVI) que relata uma experiência que vivenciou quando esteve no reino de Bungo. Bem como adverte o subtítulo do conto, trata-se de um capítulo inédito das anotações do viajante. Semelhante recurso permitiu a Machado tornar a narração sincera (como ele mesmo afirma em suas notas) com a atribuição de seu texto aos escritos de Mendes Pinto. Aqui se observa uma crítica irônica à maneira como as massas são facilmente manipuladas por oradores medíocres e prepotentes em uma sociedade alienante
¨Após fazer uma breve referência a um suposto capítulo anterior, o narrador – Fernão Mendes Pinto – anuncia que discorrerá sobre uma certa doutrina que merece ser divulgada em razão dos benefícios desta para a alma. Contextualiza a situação que se segue: no ano de 1552, em um passeio com Diogo Meireles na cidade de Fuchéu no reino de Bungo. Ao caminharem pelas suas ruas, os dois se deparam com um grande aglomerado de cidadãos perplexos que se reuniram em torno de um homem chamado Patimau que, gesticulando veemente, defendia com eloqüência a origem dos grilos por meio de um postulado “abiogênico”, segundo o qual teriam surgido do ar e das folhas de coqueiro sob a luz da lua nova. Patimau concluía seu pensamento expondo que somente alguém com sua formação acadêmica poderia, com um estudo detalhado, realizar esse descobrimento cuja glória pertence à cidade de Fuchéu.
Desse modo, a personagem exerce o papel de um mito que inibe o pensamento dos outros com o conforto de uma verdade revelada (além de se aproveitar de títulos, se identificando como filósofo, físico e matemático). O povo em seguida ovaciona Patimau carregando-o aos cumprimentos e lhe servindo de regalias. Ao continuarem caminhando, Mendes Pinto relata que se encontraram com uma outra cena muito semelhante na qual outro orador (Languru) defendia outra teoria absurda para uma multidão de pessoas ingênuas que o saudava. Confusos com a repetição exata da mesma cena e com a falta de procedência racional das idéias levantadas, Fernão e Diogo Meireles, este entendedor da língua nativa, continuam o caminhar até se encontrarem com Titané, um amigo de Diogo que os recebeu com alvoroço e que lhes explicou algo sobre a doutrina que vem sendo seguida por alguns homens da cidade que ouviram os ensinamentos a um certo bonzo (uma espécie de sacerdote).
No dia seguinte foram levados por Titané até o propalado homem: um senhor entendedor das letras que atendia pelo nome de Pomada. Quando os viajantes demonstraram interesse pela dita doutrina, o mestre começou a lhes contar que desde jovem sempre se martirizou em busca de ampliar o seu conhecimento, cercando-se de livros e desenvolvendo idéias. No entanto, tal esforço nunca era reconhecido, ao passo que o produto final sim. De acordo com o bonzo, de nada valeriam aqueles longos anos de estudo se não fosse pela existência dos outros para o honrarem. Um homem pode se tornar detentor dos mais profundos saberes, mas, se não houver contato deste com outros homens, é como se os saberes não existissem. Nas palavras do autor, “não há espetáculo sem espectador”. Logo quando chegou a isso, conta o bonzo que imaginou uma maneira fácil de se conseguir o prestígio sem a necessidade de perder longos anos com o trabalho, uma vez que só os fins são interessantes e jamais os meios.
O bonzo Pomada concluiu que “a virtude e o saber têm duas existências paralelas, uma no sujeito que as possui, outra no espírito dos que o ouvem ou contemplam”. Surge aqui a distância entre realidade e opinião: conquanto algo possa existir realmente, jamais existirá de fato se não houver opiniões que acreditem em sua existência, ou seja, não há objeto se não houver o sujeito que o conhece. Ao contrário, porém, se algo não existir na realidade, mas sim na opinião das pessoas, esse algo cumpre com a única maneira de existência necessária. Eis então a importância dada ao parecer acima do ser. Enfim, o bonzo explica que embora as teorias de Patimau e Languru carecessem de sentido, ambos conseguiram conquistar os ânimos da multidão com a aplicação dessa arte e agora desfrutam dos prazeres provindos do reconhecimento.
¨Os três deixaram a casa do mestre Pomada com o título de pomadistas. A seguir, os três se empenharam em aplicar a doutrina em seu rigor: Titané, que era alparqueiro, tratou de divulgar pela cidade que suas alparcas eram demasiadamente cobiçadas no exterior e que isso elevava a honra da cidade, passando a ser reverenciado pela opinião pública e procurado para encomendas freqüentes. Narra Mendes Pinto que se constituiu como um brilhante músico somente com a prepotência dos gestos e da maneira como organizava seus concertos pela cidade, provocando uma ilusão coletiva no povo. O sistema assim era desenvolvido plenamente, considerando-se que Fernão era bom músico na esfera da opinião sem sê-lo na realidade, dispondo do exato mesmo prestígio de alguém que o fosse.
O desfecho do conto, porém, traz o apogeu do método do bonzo Pomada executado por Diogo Meireles. É apresentado que os cidadãos de Fuchéu vêm sofrendo de uma espécie de doença que torna o nariz do paciente inchado e horrendo e que para se livrar da moléstia basta que se ampute os narizes. Entretanto os doentes preferiam manter seus narizes à lacuna facial. Sendo Diogo um médico da cidade, convocou uma assembléia com pessoas de alto status do reino de Bungo para anunciar sua teoria que consistia na distribuição de um “nariz metafísico” a cada doente que tivesse seu nariz retirado
¨Bem como a própria metafísica, a existência do nariz se dava no domínio supra-sensível, ou seja, a presença do nariz não poderia ser identificada pelos sentidos (não poderia ser visto ou tocado), mas unicamente pelo entendimento abstrato das pessoas. Um filósofo na platéia, inclusive, evitando ser ofuscado pela genialidade do médico, enaltece sua teoria afirmando que a natureza do nariz é compartilhada pelo homem:
¨“(...) visto não ser o homem todo outra cousa mais do que um produto da idealidade transcendental; donde resultava que podia trazer, com toda a verossimilhança, um nariz metafísico (...)”.
¨O narrador observa que Diogo Meireles cumpre com exímia maestria os postulados de Pomada. A partir deste dia, inúmeros pacientes buscaram pelo doutor para a operação e substituição do nariz doente pelo “metafísico” com satisfação.
¨Pouco importa se não existissem na realidade, desde que uma idéia respaldada em uma conjectura complexa afirmasse sua existência definitiva. Está comprovada a eficácia do segredo do bonzo que sobrepõe o valor da opinião à realidade. Consuma-se, enfim, a crítica machadiana aos valores deturpados que movem uma sociedade de alienados voltados para si mesmos.
¨O anel de polícrates
¨A
Lá vai o Xavier.
Z
Conhece o Xavier?
A
Há que anos! Era um nababo, rico, podre de rico, mas pródigo...
Z
Que rico? que pródigo?
¨Rico e pródigo, digo-lhe eu. Bebia pérolas diluídas em néctar. Comia línguas de rouxinol. Nunca usou papel mata-borrão, por achá-lo vulgar e mercantil; empregava areia nas cartas, mas uma certa areia feita de pó de diamante. E mulheres! Nem toda a pompa de Salomão pode dar idéia do que era o Xavier nesse particular. Tinha um serralho: a linha grega, a tez romana, a exuberância turca, todas as perfeições de uma raça, todas as prendas de um clima, tudo era admitido no harém do Xavier. Um dia enamorou-se loucamente de uma senhora de alto coturno, e enviou-lhe de mimo três estrelas do Cruzeiro, que então contava sete, e não pense que o portador foi aí qualquer pé-rapado. Não, senhor
¨Você está enganado. O Xavier? Esse Xavier há de ser outro. O Xavier nababo! Mas o Xavier que ali vai nunca teve mais de duzentos mil-réis mensais; é um homem poupado, sóbrio, deita-se com as galinhas, acorda com os galos, e não escreve cartas a namoradas, porque não as tem. Se alguma expede aos amigos é pelo correio. Não é mendigo, nunca foi nababo.
¨A e B parece que não estão falando da mesma pessoa, para “A”, Xavier é um homem rico, fértil em idéias, e muito feliz, já para “Z”, Xavier é um homem humilde, como ele próprio diz “não é mendigo, nunca foi nababo”. “A” então adverte que ele está falando do Xavier interior e “Z” está falando do Xavier exterior. E “A” passa a narrar as diversas idéias de Xavier, até que um dias, essas se esgotam. É quando Xavier a olhar pela janela, vê um cavaleiro passando...
¨Quero referir-lhe a passagem mais interessante da vida do Xavier. Aceite o meu braço, e vamos andando. Vai para a Praça? Vamos juntos. Um caso interessantíssimo. Foi ali por 1869 ou 70, não me recordo; ele mesmo é que me contou. Tinha perdi do tudo; trazia o cérebro gasto, chupado, estéril.
  (...) um dia, estando à janela, triste, desabusado das cousas, vendo-se chegado a nada, aconteceu passar na rua um taful a cavalo. De repente, o cavalo corcoveou, e o taful veio quase ao chão; mas sustentou-se, e meteu as esporas e o chicote no animal; este empina-se, ele teima; muita gente parada na rua e nas portas; no fim de dez minutos de luta, o cavalo cedeu e continuou a marcha.
¨Os espectadores não se fartaram de admirar o garbo, a coragem, o sangue-frio, a arte do cavaleiro. Então o Xavier, consigo, imaginou que talvez o cavaleiro não tivesse ânimo nenhum; não quis cair diante de gente, e isso lhe deu a força de domar o cavalo. E daí veio uma idéia: comparou a vida a um cavalo xucro ou manhoso; e acrescentou sentenciosamente: Quem não for cavaleiro, que o pareça.
¨“Conhece o caso do anel de Polícrates?” É dessa maneira que “A” introduz o mito de Polícrates na narração.
¨“(...) Polícrates governava a ilha de Samos. Era o rei mais feliz da terra; tão feliz, que começou a recear alguma viravolta da Fortuna, e para aplacá-la antecipadamente, determinou fazer um grade sacrifício: deitar ao mar o anel precioso que, segundo alguns, lhe servia de sinete. Assim fez; mas a Fortuna andava tão apostada em cumulá-lo de obséquios, que o anel foi engolido por um peixe, o peixe pescado e mandado para a cozinha do rei, que assim voltou à posse do anel. Não afirmo nada a respeito desta anedota; foi ele quem me contou, citando Plínio, citando... (...)
    Experimentemos a fortuna, disse ele; vejamos se a minha idéia, lançada ao mar, pode tornar ao meu poder, como o anel de Polícrates, no bucho de algum peixe, ou se o meu caiporismo será tal, que nunca mais lhe ponha a mão.” (ASSIS, 1998, v.1, pág. 377 – 378).
¨O texto de machadiano não considera as relações com o divino, não fala da oferenda, tudo é uma questão de sorte; Polícrates é tido como um afortunado por ter seu anel de volta, enquanto o “caiporismo” de Xavier não permite que a sua máxima retorne a ele.
¨Este conto, além de relatar um evento particular, constitui um caso exemplar do que seriam as limitações da felicidade humana ou a lógica caprichosa do destino. Os relatos de Cícero são exemplos de situações diversas: desapego em relação aos bens materiais e ironia diante das pequenas mentiras da vida cotidiana
¨O Empréstimo
¨Em O empréstimo, o autor apresenta o tabelião Vaz Nunes, em um final de expediente, recebendo a visita de Custódio, que veio lhe pedir dinheiro. O primeiro tem a capacidade de desvendar o interesse que se esconde atrás da aparência: Este honesto tabelião era um dos homens mais perspicazes do século. Está morto: podemos elogiá-lo à vontade. Tinha um olhar de lanceta, cortante e agudo. Ele adivinhava o caráter das pessoas que o buscavam para escriturar os seus acordos e resoluções; conhecia a alma de um testador muito antes de acabar o testamento; farejava as manhas secretas e os pensamentos reservados(p.383)
¨ o segundo tem “a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho”.
¨o segundo tem “a vocação da riqueza, sem a vocação do trabalho”. Tinha o instinto das elegâncias, o amor do supérfluo, da boa chira, das belas damas, dos tapetes finos, dos móveis raros, um voluptuoso, e, até certa ponto, um artista, capaz de reger a vila Torloni ou a galeria Hamilton. Mas não tinha dinheiro; nem dinheiro, nem aptidão ou pachorra de o ganhar; por outro lado, precisava viver(...) ao Custódio; davam-lhe dinheiro, um dez, outro cinco, outro vinte mil-réis, e de tais espórtulas é que ele principalmente tirava o albergue e a comida.
¨Agora, por exemplo, leu um anúncio de alguém que pedia um sócio, com cinco contos de réis, para entrar em certo negócio, que prometia dar, nos primeiros seis meses, oitenta a cem contos de lucro. Custódio foi ter com o anunciante. Era uma grande idéia, uma fábrica de agulhas, indústria nova, de imenso futuro.
¨Tinha perdido as esperanças, quando aconteceu subir a rua do Rosário e ler no portal de um cartório o nome de Vaz Nunes. Estremeceu de alegria; recordou a Tijuca, as maneiras do tabelião, as frases com que ele lhe respondeu ao brinde, e disse consigo que este era o salvador da situação.
¨venho pedir-lhe um grande favor, um favor indispensável, e conto que o meu amigo...
¨- Se estiver nas minhas mãos...
¨- O negócio é excelente, note-se bem; um negócio magnífico. Nem eu me metia a incomodar os outros sem certeza do resultado.
¨A coisa está pronta; foram já encomendas para a Inglaterra; e é provável que dentro de dois meses esteja tudo montado, é uma indústria nova. Somos três sócios, a minha parte são cinco contos. Venho pedir-lhe esta quantia, a seis meses, - ou a três, com juro módico...
¨- Cinco contos?
¨- Sim, senhor.
¨Mas, Sr. Custódio, não disponho de tão grande quantia. Os negócios andam mal; e ainda que andassem muito bem, não poderia dispor de tanto. Quem é que pode esperar cinco contos de um modesto tabelião de notas?
¨- Ora, se o senhor quisesse...
¨- Quero, decerto; digo-lhe que se se tratasse de uma quantia pequena,
¨acomodada aos meus recursos, não teria dúvida em adiantá-la. Mas cinco contos! Creia que é impossível.
¨(...)Bem, disse ele, com uma pontazinha de despeito, há de perdoar o incômodo...(...)
¨(...)Não há que perdoar; eu é que lhe peço desculpa de não poder servi-lo, como desejava. Repito: se fosse alguma quantia menos avultada, não teria dúvida; mas...
¨Pois bem, disse ele, veja o que me pode dar, e eu irei ter com outros amigos... Quanto?
¨- Não posso dizer nada a este respeito, porque realmente só uma coisa muito modesta.
¨- Quinhentos mil-réis?
¨- Não; não posso.
¨- Nem quinhentos mil-réis?
  - Não, senhor.
   - Olhe; dou-lhe coisa melhor do que quinhentos mil-réis; falarei ao ministro da justiça, tenho relações com ele, e...(...)
  - Custódio interrompeu-o, batendo uma palmada no joelho. (...)
    -Nem cem mil-réis!
- Nem cem mil-réis, pesa-me dizê-lo, mas é verdade. Nem cem mil-réis. Que horas são?
¨Pronto! disse-lhe Vaz Nunes, com o chapéu na cabeça.
¨- Quer ver?
¨E o tabelião desabotoou o paletó, tirou a carteira, abriu-a, e mostrou-lhe duas notas de cinco mil-réis.
¨Não tenho mais, disse ele; o que posso fazer é reparti-los com o senhor; dou-lhe uma de cinco, e fico com a outra; serve-lhe?
¨Custódio aceitou os cinco mil-réis, não triste, ou de má cara, mas risonho, palpitante, como se viesse de conquistar a Ásia Menor. Era o jantar certo.
¨Com a mão esquerda no bolso das calças, ele apertava amorosamente os cinco mil-réis, resíduo de uma grande ambição, que ainda há pouco saíra contra o sol, num ímpeto de águia, e ora habita modestamente as asas de frango rasteiro.
¨O leitor acompanha o confronto de disfarces entre os dois cavalheiros. A cada lance desse jogo, cada um dos contendores aparenta estar jogando a sua última cartada, ao mesmo tempo que cada uma das partes disfarça os trunfos de que ainda dispõe: a elasticidade da ambição, de um lado, e a capacidade de concessão, do outro. Encerrada a contenda, ambos parecem sair satisfeitos com o próprio desempenho cujo ganho é mínimo para um e a perda, insignificante para o outro.
¨A sereníssima República
¨Conferência do Cônego Vargas
¨A história começa com um narrador que pede atenção para uma descoberta da ciência brasileira superior a uma outra, promovida por um sábio inglês, que teria sido publicada em O Globo – jornal republicano e de orientação cientificista
¨Meus senhores,
  Antes de comunicar-vos uma descoberta, que reputo de algum lustre para o nosso país, deixai que vos agradeça a prontidão com que acudisses ao meu chamado. Sei que um interesse superior vos trouxe aqui; mas não ignoro também, — e fora ingratidão ignorá-lo, — que um pouco de simpatia pessoal se mistura à vossa legítima curiosidade científica. Oxalá possa eu corresponder a ambas.
¨o conto é uma crítica: crítica ao processo eleitoral, feita como um discurso de um cônego, que afirma ter achado uma espécie de aranha que fala, e ter criado uma sociedade delas, chamada "Sereníssima República". Ele escolhe o sistema de eleição baseado no da República de Veneza, onde se retirava de um saco bolas com o nome dos eleitos.
¨Sim, senhores, descobri uma espécie araneida que dispõe do uso da fala; coligi alguns, depois muitos dos novos articulados, e organizei-os socialmente. O primeiro exemplar dessa aranha maravilhosa apareceu-me no dia 15 de dezembro de 1876. Era tão vasta, tão colorida, dorso rubro, com listras azuis, transversais, tão rápida nos movimentos, e às vezes tão alegre, que de todo me cativou a atenção. No dia seguinte vieram mais três, e as quatro tomaram posse de um recanto de minha chácara. Estudei-as longamente; achei-as admiráveis.(p.393)
¨seu contumaz narrador — em primeira-pessoa —, a par da crítica política, faz uma inquirição a respeito da alma exterior do homem. Por meio de uma alegoria eleitoral, sob a forma de uma conferência de um cientista, Machado discursa a respeito do homem e da sociedade que ele constrói — algo como sendo o homem de múltiplas faces, cabe buscar a perfeição, tentar driblar a própria natureza ; para tanto, não importam os outros ,e sim seu interesse pessoal, e aqui manifesta-se, mais uma vez, um tema caro a Machado:
¨ a discussão sobre a Ciência e a Filosofia, já feita por exemplo em O alienista e em contos como "A causa secreta" — ambos críticos com relação às correntes filosóficas em voga na segunda metade do século XIX (o determinismo, o cientificismo, etc.) e como a ciência (aliada ao poder político) pode levar o homem a se perder na variedade inexplicável dos indivíduos. Também em "A Sereníssima República" pode-se perceber a intenção do autor em analisar as cruéis relações de dominação entre seres iguais, todos subjugados por um sistema político e social marcado pelo autoritarismo, mas que não hesitam em reproduzir e legitimar a opressão de que são vítimas.
¨O ESPELHO
¨Esboço de uma nova teoria da alma humana
¨Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar que vinha de fora.
¨Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do universo.
¨Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava
¨de um ou outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e cáustico.
¨Numa das noites, incitado por um dos participantes, o casmurro usou a palavra – narraria um fato de sua vida e não consentia réplica. Não se tratava de opinião ou conjectura, era apenas uma demonstração da matéria debatida .“Em primeiro lugar, não há uma só alma, há duas...” A afirmação causa perplexidade, mas o narrador não se intimida e reitera que existem duas almas:
¨uma exterior, outra, interior... A alma exterior não é sempre a mesma, modifica-se com as circunstâncias.As  duas juntas, metafisicamente, se completam, quem perde sua alma exterior vive incompletamente, e há caso de pessoas que perdem a existência inteira. O homem continua relatando sua experiência de quando tinha 25 anos e fora nomeado alferes da Guarda Nacional.
¨Tornou-se o centro de atenção de sua humilde família e passou a ser identificado como o Sr. Alferes. Não tardou e uma  tia que morava a algumas léguas, convidou-o a passar alguns dias em sua casa, com a farda naturalmente. Os dias passavam nas formalidades próprias de uma autoridade. A grande relíquia da casa, um grande espelho, fora colocado em seu quarto como sinal de admiração e orgulho.
¨“- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas equilibraram-se, mas não tardou que a primeira cedesse à outra; ficou-me uma parte íntima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da patente, a outra dispersou-se no ar e no passado.”
¨Ocorreu o imprevisto e a tia teve que se ausentar por alguns dias. Restaram os escravos que utilizaram suas cortesias e louvores “Nhô Alferes é muito bonito, nhô alferes há de ser coronel”. Um concerto de louvores escondia suas reais intenções. Na manhã seguinte, todos haviam fugido. O homem, após alguns dias, no silêncio vasto tornara-se um boneco que mal comia, seu corpo era dominado de dor ou cansaço, nada mais...
¨Durante muitos dias não se olhou no espelho num impulso inconsciente, mas findo oito dias olhou-se no espelho com o fim de encontrar-se dois, mas o que viu foi uma figura vaga, dispersa, mutilada... Sabia que pelas leis físicas aquilo não era possível, mas sua sensação era real – o espelho refletia uma decomposição de contornos. Em desespero, em meio a feições fragmentadas, teve a idéia
¨de vestir a farda de alferes e tornou a mirar-se. O homem, alferes, enfim, havia encontrado sua alma exterior.
¨Assim, Machado de Assis esboçou uma nova teoria da alma humana, espelhando o homem em sua enorme ambigüidade de ser para si e ser para o outro, ou seja, são muitas as almas exteriores:a família, as realizações profissionais, o contato com os outros. Muitos objetos espelham nosso eu, encontramo-nos muitas vezes nas atitudes alheias, nos valorizamos nos elogios que ouvimos, nos sentimos vivos na percepção dos outros. São inúmeros os espelhos, ou almas exteriores, e um único e definitivo.
¨Verba Testamentária
¨"... Item, é minha última vontade que o caixão em que o meu corpo houver de ser enterrado, seja fabricado em casa de Joaquim Soares, à rua da Alfândega. Desejo que ele tenha conhecimento desta disposição, que também será pública. Joaquim Soares não me conhece; mas é digno da distinção, por ser dos nossos melhores artistas, e um dos homens mais  honrados da nossa terra...“
¨A narração se inicia com a transcrição de uma cláusula do testamento de Nicolau B. de C., na qual exige ser enterrado em um caixão fabricado pelo Sr. Joaquim Soares, um operário humilde.
¨A notícia se espalha pela corte e pelas províncias e é percebida como “uma ação rara e magnânima”. Entretanto, esquecido o episódio, o narrador comprova, através da exposição da vida de Nicolau, que a cláusula do testamento pode ser explicada por um problema congênito do protagonista.
¨Venho dizer que a verba testamentária não é um efeito sem causa; venho mostrar uma das maiores curiosidades mórbidas deste século. Sim, leitor amado, vamos entrar em plena patologia. Esse menino que aí vês, nos fins do século passado (em 1855, quando morreu, tinha o Nicolau sessenta e oito anos), esse menino não é um produto são, não é um organismo perfeito.

  A  síntese da história mostra que Nicolau, desde a infância, revela um comportamento doentio.Ao contrário, desde os mais tenros anos, manifestou por atos reiterados que há nele
     algum vício interior, alguma falha orgânica. Não se pode explicar de outro modo a obstinação com que ele corre a destruir os brinquedos dos outros meninos, não digo os que são iguais aos dele, ou ainda inferiores, mas os que são melhores ou mais ricos. Menos ainda se compreende que, nos casos em que o brinquedo é único, ou somente raro, o jovem Nicolau console a vítima com dois ou três pontapés; nunca menos de um.
¨O sofrimento de Nicolau se acentua na idade adulta, a ponto de não poder suportar a convivência com pessoas simpáticas e nobres. Por sugestão do cunhado, que é médico, Nicolau fica isolado em um ambiente rico, onde sua auto-estima é positivamente estimulada por meio de falsas notícias ruins, publicadas em jornais também inexistentes. Apesar disso, ele piora com o passar do tempo e, quando morre, deixa uma verba para pagar um caixão de má qualidade. A irmã de Nicolau, assim como seu marido, acha o último desejo muito estranho, mas decide que a vontade do defunto deve ser cumprida.
¨A análise dos aspectos referidos permite afirmar que a verba, cujo estranho uso é justificado pelo narrador, ganha dupla significação: por um lado, ela remete a mais uma das extravagâncias do protagonista que destina dinheiro para a aquisição de um caixão de má qualidade a fim de evitar elogios ao executor da obra de marcenaria, elogios que poderiam perturbá-lo, ainda que morto; por outro lado, abstraída do testamento de Nicolau B. de C., ela aponta para a herança, transferida a todos os seres humanos que, em maior ou menor grau, carregam consigo o egoísmo e a inveja pelo sucesso de seus semelhantes. Assim, Machado de Assis denuncia aspectos negativos do ser humano, que migrariam de geração em geração. Para tanto, abre mão da seriedade e, sem uma preocupação evidente com ensinamentos morais, concebe uma personagem burlesca, permitindo que o leitor descubra, através do riso, uma das causas da infelicidade humana.